‘Johan: a anatomia de um gênio’ conta a trajetória do craque holandês e treinador revolucionário

‘Johan: a anatomia de um gênio’ conta a trajetória do craque holandês e treinador revolucionário

 Livro detalha genialidade, contradições e fantasmas de Cruiff; lenda completaria 75 anos nesta segunda-feira

Porto Velho, RO - O gênio absoluto de Johan Cruiff está em sua perpétua contradição. O holandês nunca foi linear em sua vida, sempre se deixou levar por seu instinto. Sempre procurou o melhor para ele próprio, mas esse individualismo egoísta acabou por retroalimentar uma revolução coletiva em todos os sentidos, que terminou por oferecer um espetáculo sem igual para todos os torcedores do mundo. 

Outra contradição. Se olharmos para a lista dos dez melhores jogadores da história, é muito difícil que Cruiff não esteja nela ao lado de Diego, Lionel, Edson, Cristiano, Alfredo, Ferenc, Romário, Ronaldo ou Franz, por exemplo. 

Peguem a lista dos dez treinadores mais admirados ao longo da história deste esporte e a esmagadora maioria, provavelmente, se lembrará de seu nome entre mestres e discípulos seus. É um caso único. Não existe no mundo do futebol alguém que tenha sido tão grande no gramado e no banco. 

Fosse com o braço esticado a dar orientações e cabelo ao vento, ou com o inseparável pirulito na boca enquanto olhava sentado com o seu paletó bege ao que ia se sucedendo à sua frente, Cruiff é mito. E como todo o mito há muita verdade e, também, inevitavelmente, exageros ao redor de sua figura.

Cruiff foi gigante. Todas suas façanhas e suas conquistas merecem ser exaltadas, porque, afinal de contas, sua figura é consensual a partir de fatos que lhe permitiram entrar na memória coletiva de gente que cresceu em Amsterdã, mas também, no Rio de Janeiro, no Porto, em Roma ou em Sydney. 

Contudo, sua carreira e vida estiveram longe de serem tão perfeitas como a lenda fez parecer durante muito tempo. Para cada luz há uma sombra que é preciso iluminar. Longe de ter sido um revolucionário ao espírito dos anos 1960, apesar daquele cabelo comprido e sua aversão à autoridade, Cruiff foi um conservador social, um capitalista liberal quase extremista e o primeiro atleta dentro da indústria do futebol a colocar o dinheiro à frente de todo o resto. 

Isso não impediu que seu caráter tenha sido determinante na evolução física, tática e econômica do futebol europeu na virada da década de 1970. Pelo contrário, teria sido impossível o futebol ter chegado onde chegou sem ele. 

A enorme diferença é que a religião ao redor do cruiffismo criou um ser linear quando Johan nunca teve problemas em existir desde a contradição natural.

O romantismo de um herói de outros tempos que sempre rodeou sua figura se choca com suas convicções, as de um homem que acreditava na ideia de uma elite superior, que estava disposto a comprar um clube e dar-lhe seu próprio nome ao estilo quase Red Bull para expandir como franquia como os clubes americanos, cuja forma de gerir o esporte ele tanto admirava. 

Sua passagem como jogador pelos Estados Unidos pode ter sido uma nota pequena em sua lista de feitos, mas foi determinante para moldar seu pensamento como treinador. E claro, Cruiff elevou o futebol holandês a uma outra realidade, mas ele foi também um dos primeiros jogadores a se recusar a jogar por seu país por interesse pessoal em diversas ocasiões. 

Já em sua etapa de treinador, todos se apaixonaram pelo futebol atrevido e seu pensamento transformou-se em sinônimo da ideologia de “cantera”, que fez o Barcelona sentir-se “més que un club”. 

Algo que contrasta, na verdade, com os primeiros anos de sua passagem como técnico do clube, em que defendeu a contratação de jogadores veteranos capazes de lhe dar resultados imediatos ao invés de apostar na formação local.

E não podemos esquecer esse número 14 que ele não usou em mais do que cinco anos ao longo de toda a carreira, mas cuja iconografia foi suficiente para transformar-se em imagem de marca. Tudo isso foi Cruiff, um retalho de episódios, momentos e ideias que, frente a um espelho, ofereceram ao mundo a versão do homem que cada um quer ver.

Ainda assim, com todos esses paradoxos existenciais, é impossível que um torcedor deixe de lado a imagem de esteta nos gramados ou o espírito quase suicida como técnico. Há quem se lembre de suas vitórias mais épicas e outros de suas derrotas mais absolutas. 

Sua grandeza veio também daí, a tal ponto que a cada vez que ele perdia, parecia servir para aumentar mais a lenda. Afinal, se o Maracanazo destroçou a carreira de alguns dos maiores jogadores brasileiros da história, só a Cruiff podia suceder que perder a final de um Mundial o fizesse ainda mais popular do que já era. 

Na Catalunha, como jogador, ele foi adorado como poucos, mas os números nos mostram que em cinco anos não conseguiu mais do que uma liga e uma Copa do Rei. Claro que os números nunca explicam tudo, como o próprio Johan seria o primeiro a defender. 

Mais importante que o mental foi o impacto social e cultural numa sociedade amordaçada que marcou para sempre uma geração que associou a palavra liberdade ao olhar desafiador do holandês, e nunca mais se esqueceu disso. 

Poucos jogadores manejaram tão bem sua imagem midiática com a imprensa, a tal ponto que sua narrativa épica nos livros de história, às vezes, se distancia um pouco da realidade. Afinal, quantas vezes não se leu que o futebol holandês praticamente começou quando Cruiff aterrisou no velho De Meer, uma verdade que a inoportuna vitória do Feyenoord na final da Copa dos Campeões da Europa de 1970 trata de desmentir.

A Holanda, com Cruiff, foi finalista da Copa do Mundo de 1974, mas a Holanda, sem Cruiff, também o foi quatro anos depois, e esteve, talvez, bem mais perto de sair campeã do mundo. E sim, Johan acabou com a má sorte do Barcelona nas finais da Copa dos Campeões da Europa, mas também sofreu a mais humilhante das derrotas, dois anos depois, contra o Milan, que desprezara publicamente como uma equipe indigna de seu “Dream Team”.

Este livro toca em alguns e outros momentos. Nos que justificadamente converteram Cruiff num ídolo global com todo o merecimento, mas também, naqueles escuros que o próprio preferiria que tivessem caído no esquecimento. 

No fundo, é um livro que se move entre dois campos opostos como foi sua vida. Cruiff jamais admitia estar errado, e talvez sua trajetória tenha sido um acúmulo de acertos mesmo quando todos pensavam que não era assim. 

Como jogador, Johan marcou uma geração que acreditava que o futebol poderia ser mais que um esporte. Como treinador, deixou uma herança que mudou para sempre a face do jogo. Em ambos os casos, sem seguir um plano ou um desígnio. 

O caminho foi construído enquanto andava, e quando teve de tropeçar em alguma pedra, limitou-se a garantir que não o faria novamente. A melhor forma de honrar sua memória é procurar entender esse homem que nunca se enganava e que todos encontraram uma maneira de amar.

ego descomunal

Esta viagem é, portanto, muito mais do que uma biografia convencional. Livros desse estilo já existem, ainda que quase sempre vítimas dessa ideia de perpetuar exclusivamente o mito. O Cruiff profissional, como jogador e como técnico, ajudou o futebol a evoluir em mil direções, todas elas decisivas para entender o jogo de hoje.

 Mas Johan enquanto homem foi também uma figura atormentada pela perda, profundamente carente e que lutava contra seus fantasmas agarrando-se a um ego descomunal que, ironicamente, se transformou no maior motor de suas façanhas. Tudo isso é parte de sua história e também da herança que nos deixa até hoje. 

Nada do que fez se entenderia sem conhecer ambas. Como o seu célebre “Cruiff Turn”, com Johan nunca ninguém soube verdadeiramente o que esperar. Talvez por isso, escrever sobre ele seja um exercício tão complexo quanto estimulante. 

Para quem cresceu com a lenda de Cruiff, como eu próprio, a realidade, às vezes, pode soar áspera e inesperada, pois, em muitos aspectos, ele foi muito mais um Neymar do que um Messi. Talvez não tivesse sobrevivido, sendo como era, na era das redes sociais. 

Numa cultura de estandardização tática que surgiu a partir de muitos dos conceitos que ele próprio defendia, é possível que não houvesse sequer lugar para sua melhor versão como jogador nos nossos dias. 

Mas esse é também o sopro de ar fresco que nos permite entender que, para alcançar a glória eterna, foi preciso acontecer muita coisa em sua vida. A história de um homem que viveu constantemente entre um antes e um depois. 

“Em certa medida, sou imortal”, disse um dia à imprensa. Talvez tivesse razão. Afinal, ele nunca se enganava.


Fonte: O GLOBO
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